Capitulo 2
Cidade Mercadoria
É necessário voltar o olhar para a questão habitacional muito além da dicotomia formalidade versus informalidade. Esse é apenas um dos aspectos problemáticos enfrentados pela população de baixa renda diante o engodo do problema da falta de um teto para morar.
Não existe na capital do país nenhum mapeamento oficial sobre a quantidade de imóveis abandonados. Apesar da pouca idade, 58 anos, essa questão anuncia um dos grandes problemas de uma cidade que precisa rever em suas questões urbanísticas. Regulamentar instrumentos da discussão sobre a avaliação e valorização da função social e evitar o agravamento de ruínas que se prontificam.
O Estatuto das Cidades possui 17 anos e o Distrito Federal ainda não fez a regulamentação local, então isso dificulta ser colocado em prática. Para evitar o abandono de prédios, é proposto pelo documento a utilização compulsória do imóvel. O governo notificaria o proprietário e daria uso ao bem no prazo de dois anos. Caso nada mude, o dono pode ser obrigado a pagar o IPTU progressivo — em cinco anos, a alíquota, de 0,3%, pode chegar à 15% sobre o valor do imóvel.
Também, por determinação, o mau ou não uso da propriedade, o governo pode até fazer a desapropriação do bem e ressarcir o dono com títulos da dívida pública, impondo obrigações e garantindo a função social da propriedade.
A pesquisadora Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista brasileira, em seu livro a Guerra dos Lugares (2017) contextualiza bem o desafio de morar. Ela é crítica ao modelo econômico neoliberal do mercado financeiro adotado em grande parte do mundo.
“Esse modelo vai capturando territórios, expulsando e colonizando espaços e formas de viver”, afirma Raquel. Ela esta familiarizada com o campo da moradia popular em diversos países. A pesquisadora não só viu de perto as condições habitacionais, como também pôde captar as intrincadas relações entre políticas financeiras e habitacionais, atreladas à grandes interesses econômicos.
Raquel foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Ela adquiriu nesse trabalho uma visão ampla e completa do problema mundial da habitação. Ela discute sobre como o complexo imobiliário-financeiro atua sobre as políticas urbanas, impactando os nortes da sobrevivência nos territórios.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2017, o mercado imobiliário representa quase o valor total 163 trilhões de dólares – o equivalente a mais que o dobro da economia total do mundo. Metade de todos os ativos globais, mais que o dobro do PIB mundial.
Raquel Rolnik na ocupação cultural Mercado Sul Vive
O Brasil chegou a um déficit habitacional de 7,7 milhões de moradias em 2015, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Associação Brasileira de Incorporações Imobiliárias. Este é o maior indicador dos últimos dez anos. Em 2007 o número era de 7,26 milhões.
As propriedades são inacessíveis para uma maioria de famílias de baixa renda. O extrato é de 91% que vivem com até três salários mínimos e são desafiadas pelo desafio de pagar por um lar. O mercado imobiliário pouco atende esse perfil por questões muito práticas: a falta de condições financeiras. O peso com aluguel é ligado intimamente aos altos valores das moradias nos grandes centros.
O preço médio do aluguel sobe constantemente. A burocracia também impede muita gente ao tentar alugar um imóvel. Fiadores com imóveis, comprovação de renda de até 2 ou 3 vezes maiores que a do valor a ser pago, dificulta o acesso.
O mais grave no aumento do déficit foi o ônus excessivo do aluguel, quando uma família ganha até três salários mínimos e gasta mais do que 30% da renda com moradia. A própria ONU recomenda que não se pode gastar mais de 30% em aluguel.
Rolnik conta que temos no Brasil ocupações compulsórias. Consequências diretas da negação de políticas habitacionais apropriadas, grande poder da especulação imobiliária e inexistência de alternativas para populações com menos poder aquisitivo.
A situação é grave. Agravado pela crise econômica, expande-se a população em situação de rua e diversos vazios tornam-se mais propícios a ocupações em grandes cidades brasileiras, muitas vezes em condições de irregularidade e insegurança.
Desabamento de um prédio de 24 andares no Largo do Paissandu, centro de São Paulo. Foto: Ravena Rosa / Agência Brasil
Na madrugada de primeiro de maio deste ano, cidades do país inteiro se viram preocupadas com o agravamento que o abandono dos lugares pode proporcionar. Após o incêndio e desabamento de um prédio de 24 andares no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, o debate sobre o existir nas cidades inflamou novamente. O prédio possuía os 10 primeiros, dos 24 andares ocupados. O local abrigava cerca de 150 famílias sem-teto irregulares.
O plano de governo de Bolsonaro, novo presidente do Brasil na gestão 2019 – 2022, não existem propostas para áreas. Em sua campanha, o falou pouco sobre habitação, porém em vídeo se comprometeu em manter o Minha Casa Minha Vida (programa de habitação do governo federal) e também de diminuir suas taxas. Ver nova declaração do Bolsonaro a respeito do tema
No lançamento do seu mais novo livro, Raquel esteve na Bienal do Livro de Brasília de 2016 e também na Ocupação Cultural Mercado Sul Vive em Taguatinga. Realizou uma roda de conversa com a comunidade e estudantes de arquitetura da Universidade de Brasília – UnB sobre seu livro sobre a colonização da terra e da moradia na era das finanças.
Raquel Rolnik no Mercado Sul em 2016. Foto: Webert da Cruz
Em relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, Leilani Farha, atual relatora especial da ONU sobre Moradia criticou as consequências do que chamou de um “mercado imobiliário que coloca a especulação acima dos direitos humanos, tornando as propriedades inacessíveis para a maioria das famílias”.
De acordo com a especialista, “a moradia perdeu sua função social e passou a ser vista como um veículo para riqueza e lucros. A transformação da moradia em uma mercadoria rouba a conexão da casa com a comunidade, a dignidade e a ideia da propriedade como um lar”, frisou.
Movimentos de intervenção urbana como o MSV organizam-se de diversas formas pelo direito à cidade no Brasil. Exemplos como o Ocupe Estelita (PE), Ocupação Mariana Crioula e Vito Gianotti (RJ) e a Ocupação Espaço Comum Luiz Estrela (MG) revelam um Brasil recheado de divergências muito tangíveis da separação entre desenvolvimento capitalista e a democracia dos lugares no mundo contemporâneo.
“Essas iniciativas podem ser questionadas, ou não, no ponto de vista legal, da legalidade, mas é outra a discussão da legitimidade social”, afirma Benny Schvarsberg, especialista em sociologia urbana pela UnB. Benny se refere aos semelhantes enfrentamentos de árduos processos políticos e jurídicos entre esse tipo de intervenção nas cidades, com suas individualidades contextuais.
Para o urbanista, a legislação, a destinação das áreas segundo o código de obras e edificações, plano diretor, lei de uso e ocupação do solo e o poder judiciário tradicional abrem alas para uma série de indagações sobre ocupações em espaços privados e públicos. Porém, todo o trabalho de revitalização e ressignificação de lugares antes menosprezados ganham potência quando se identifica os benefícios dessas transformações de forma ampla na sociedade.
“E a discussão da legitimidade social está centrada nesse conceito, nessa visão, da função social da propriedade e da cidade”, apresenta Benny. “Aquela área estava cumprindo sua função social? Seja ela urbana, rural, pública ou privada, estava cumprindo a sua função social a qual foi destinada?”, questiona.
Para Nara, o caminho para os cidadãos nas cidades, frente ao descaso dos lugares, é com questionamento e ação. “Se a propriedade privada impede a cidade de transformar, de se reinventar, de se renovar, acredito que sim, vale a pena, tem que ocupar”, afirma. “Até quando a propriedade privada é mais importante que a cidade em si? Do que um bairro se deteriorar?”, questiona.
Formação autonoma nos espaços ocupados pelo MSV. Foto: Arquivo MSV
O conflito fundiário jurídico
Existe um processo de reintegração de posse das lojas ocupadas pelo MSV que já passou por duas varas judiciais. A primeira foi a Vara Civil de Taguatinga. A segunda e atual é a Vara do Meio Ambiente e Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), julgada pelo juiz Carlos Frederico. São 14 membros do movimento MSV réus na ação judicial hoje.
O dono e empresário Josmar, em abril de 2017 deu uma, talvez a única, entrevista para o veículo Metrópoles sobre sua tentativa de retomada dos lugares abertos.
Josmar possui, em mãos, uma escritura pública destes espaços e conta que o empreendimento foi erguido pelo pai. De acordo com a matéria do jornal, o empresário afirma que pelo menos oito lojas e três boxes do centro comercial estão ‘invadidos’ desde 2015. No Mercado Sul, ele também recebe aluguel de outros espaços.
“Não vamos entrar em acordo com invasores. Quero os imóveis de volta para que sejam alugados. Estou há mais de dois anos tendo prejuízo”, afirmou Josmar da Costa para o Metrópoles ano passado.
Josmar disse, ainda, que paga cerca de R$ 50 mil por ano em impostos, como IPTU, e não abrirá mão dos imóveis que foram ocupados sem sua permissão.
“O que ocorreu foi uma ação de esbulho criminoso de uma propriedade particular urbana devidamente registrada e em dia com seus impostos”, denuncia Josmar ao afrimar que o local é definido legalmente como área estritamente comercial.
A matéria em questão descreve que ao acionar a Justiça, após a ocupação, o suposto dono conseguiu uma decisão favorável ao seu pedido de reintegração de posse. A então juíza responsável em 2015, Thaissa de Moura Guimarães, entendeu que o imóvel “foi efetivamente invadido” e ordenou a saída do espaço em 48 horas. Foi aberta também a possibilidade de uso de força policial, caso necessário. Porém, recursos judiciais colocados pelos advogados dos ocupantes conseguiram suspender a operação de despejo.
A suspensão da determinação da juíza Thaissa foi baseada principalmente no Estatuto da Cidade, argumentando que os imóveis não cumpriam a função social da posse e da propriedade. O texto também aborda a violação dos direitos fundamentais à moradia e cultura e da incorreta identificação de Josmar das propriedades. Das declarações, foi citado negociações entre o MSV e o Executivo distrital e federal acerca da desapropriação dos imóveis para fins de residência artística.
Em 2018, foram feitas diversas tentativas de uma entrevista do Josmar, dono das lojas, para esta reportagem. No dia 6 de novembro, em uma tentativa exitosa de diálogo por telefone, ele disse que não tinha interesse em dar entrevista, pois acredita ser desnecessário – ele deu a entender que esta em privilégio no processo.
Na justiça, o juiz Carlos Frederico, que atualmente acompanha o caso, determinou que o processo fosse para defensoria. Ao retomar, decidirá se julga logo o caso ou chamará audiência de instrução com escuta de testemunhas.
COMPREENDENDO A SITUAÇÃO FUNDIÁRIA DO MERCADO SUL
- De acordo com registros da Terracap, a área do Mercado Sul consta oficialmente como lote único, destinado ao comércio, e sem previsão legal de loteamento ou alteração de uso;
- Existe um documento de “convenção de condomínio”, datado de 1980, que estabelece as características do terreno e da divisão física em lojas e boxes, regras de ocupação e convivência por parte dos “condôminos” e do “síndico”;
- Ao longo dos mais de 40 anos de existência do Mercado, as edificações foram loteadas, alugadas e vendidas formal e informalmente, de maneira que os arquivos legais estão, em maior parte, incompletos;
- Poucas lojas possuem escritura.
Articulações institucionais
No primeiro ano de ocupação, em 2015, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarou em nota técnica uma consideração pelos espaços ocupados. O documento sinaliza o Mercado Sul enquanto importante ponto de cultura e prática da cidadania. Para o Iphan a iniciativa é a apropriação da cidade pela comunidade.
O documento do Iphan destaca primeiramente a história desta localidade que fica no bairro de Taguatinga, a qual se iniciou de maneira estritamente comercial e depois se tornou cena de diversas ocupações. O documento ressaltou que o protagonismo da comunidade “demonstra tanto um sentido de organização e apropriação do espaço, quanto a legitimidade e comprometimento dos envolvidos”.
O documento também sugere que a manifestação de apoio da Superintendência do Iphan no Distrito Federal é pertinente, tendo em vista que o local se constitui como “referência histórica para toda uma comunidade taguatinguense”.
Ocorreu uma reunião em 2015 com órgãos do Governo de Brasília, membros do coletivo MSV e o Superintendente do Iphan no Distrito Federal, no qual foram apresentadas as reivindicações da Ocupação.
O coletivo MSV solicitou o reconhecimento do Beco como patrimônio cultural. Na ocasião o superintendente declarou que não caberia ao instituto estratégia de apoio emergencial, pois não se adequa ao “tombamento de espaço edificado”, nem ao “registro de lugar”. Somente projeto de ação futura poderia ser discutido e se disponibilizou para auxiliar a comunidade a acessar outras políticas públicas.
Sobre a solicitação de desapropriação e cessão de uso, o Iphan DF também declarou que não possui competência direta para isso. Recomendou, em prol da comunidade do DF, que a destinação seja cultural. Não apenas mais um “espaço cultural” pelas mãos do governo, e sim, gerido pela comunidade em questão.
O texto de apoio do Iphan ainda traz à tona problemas causados pela gentrificação e a importância de que a comunidade seja considerada em “todos os aspectos decisórios de eventuais regularizações do local”.
REIVINDICAÇÕES DO MOVIMENTO MERCADO SUL VIVE
- Reconhecimento do Mercado Sul como patrimônio cultural;
- Desapropriação e cessão de direitos de uso;
- Reconhecimento de um projeto urbanístico e adequação para uso cultural, social e habitacional;
- Viabilização de recursos para projeto urbanístico sustentável.
Promessas e estagnações
O Governo do Distrito Federal já manifestou apoio ao Mercado Sul Vive e oficializou interesse em desapropriar espaços ocupados. Um ato solene ocorreu no Gabinete do Secretário de Cultura (Secult), Guilherme Reis, com a presença de integrantes do movimento de ocupação cultural.
Na tarde de 13 de setembro de 2016, a Secult e a Secretaria de Relações Institucionais e Sociais (Seris), órgão ligado à Casa Civil do GDF, reconheceram publicamente a ocupação MSV e formalizaram um documento o interesse do Governo Distrital em desapropriar os 8 lotes ocupados pelo movimento cultural em Taguatinga Sul. A equipe da Secult já tinha ido em algumas ocasiões ao Mercado Sul discutir a questão.
Em maio de 2017, o próprio governador Rodrigo Rollemberg (PSB) esteve na comunidade e se reuniu com os produtores culturais. Ele revelou que o desejo do Governo é que todos os eventos culturais realizados nas duas ruas do Beco sejam promovidos em diálogos com órgãos como a Administração Regional de Taguatinga e a Agência de Fiscalização (Agefis).
Ato Solene ocorreu no Gabinete do Secretário de Cultura com a presença de integrantes do movimento de ocupação cultural. Foto: Arquivo MSV
Rollemberg afirmou que “a intenção é alavancar esse lugar, que já é reconhecido pela comunidade como um importante ponto cultural”. O governador prometeu discutir resoluções a partir da legalidade que atendam ao interesse público e às reivindicações comunitárias.
“Vamos reunir todos os agentes do governo e estudar os procedimentos oficiais que podemos adotar”, propôs. “Em vez de criar dificuldades, a intenção é alavancar esse lugar, que já é reconhecido pela comunidade como um importante ponto cultural”, disse Rollemberg.
Após mais de um ano desses diálogos, Abder Paz conta que o processo não foi avançado em âmbito governamental, como foi prometido.
Em 9 de agosto de 2017, o Governo do Distrito Federal publicou um decreto que determinou a desapropriação de um terreno na 207 Sul. O local também estava em disputa por empresários e moradores do Plano Piloto.
Guilherme Reis, questionado porque também os espaços do Mercado Sul não foram desapropriados, ele conta que “talvez naquele momento não tinha sido possível, a coisa arrefeceu e o movimento aqui (no Plano) foi muito forte em termos de envolvimento comunitário”, respondeu à equipe desta reportagem.
O secretário de cultura também conta que não conseguiram fazer o mesmo com outras áreas que possuem certeza que o Estado tem que intervir ali e trazer de volta pro poder público.
Mas a grande razão, segundo Guilherme, é que o diálogo com o MSV foi mais forte em 2016 e a partir de 2017 “deu uma diminuída, porque também resolvemos alguns problemas, e a vida começou a andar melhor, com menos pressão”, apresenta.
“Situação do Estado naquele momento era trágica. Quando falei para o Governador que eu estava recomendando que para que a gente trabalhasse na desapropriação do Mercado Sul e desses outros lugares, fui chamado na memória e ele falou: não tem dinheiro”, relata o secretário. “Naquele momento não havia dinheiro. Esse processo da 207 sul tá na justiça e não se resolve de uma hora para outra também”, disse.
Recentemente, em 14 de novembro de 2018, a equipe de advogados da Candanga Advocacia Popular, que defendem a ocupação do MSV na Justiça, abriu um Ação Civil Pública (ACP) contra o GDF. O pedido é de que sejam tomadas providências, basicamente, para que a produção cultural do Mercado Sul mantenha-se nos próximos anos. Que o Estado se posicione sobre a situação social e fundiária do local.