Capítulo 3
Histórias sobre este chão
O Distrito Federal é um território que tem, como qualquer outro, muitas particularidades. E é preciso atenção para tentar entender suas dinâmicas urbanísticas e imobiliárias. “Desde a gênese, desde a origem, a maioria dos trabalhadores, que foram a força de trabalho que construiu a cidade, tiveram muita dificuldade para ter um lugar”, conta Benny.
Para compreender mais sobre o Mercado Sul (o Beco) e como surgiu Taguatinga, é preciso entender os casos e descasos da construção da capital no planalto central. O projeto de urbanismo de Lucio Costa, o avião com suas asas curvadas, foi um projeto humanista, “um projeto de alguém que inventou, como ele próprio disse [Lucio Costa], uma cidade que era pra ter lugar para todo mundo, gente de todos os segmentos”, descreve Benny.
Uma cidade em que todos teriam lugar para viver. Viveria o ministro, o servente, o professor, as diferentes pessoas, independentemente da sua inserção social ou econômica. “Morariam perto, nas diversas quadras inclusive” conta o professor de urbanismo, “convivendo num mesmo espaço, numa mesma cidade”.
Benny explica que é preciso compreender que Brasília é uma cidade que como, o próprio autor Lucio Costa dizia, não nasceu do planejamento da região de onde ela se insere. “Brasília ensejaria um processo de desenvolvimento que poderia ser planejado, porque existe esse mito de Brasília: cidade planejada. O próprio Lucio Costa reconhece que não”, conta o professor.
Lucio Costa previu que Brasília não comportaria tanta gente. Sua orientação foi que começassem a construir novos lugares ao redor da capital, assim que a cidade prevista para 500 mil habitantes não comportasse mais pessoas. Porém, a história não foi bem assim.
“Logo nos primeiros anos da construção de Brasília, mal tinha 200 mil habitantes e já iniciou o processo de ‘centrifugação’, jogar para uma quantidade muito expressiva de pessoas”, diz Benny.
O Mercado Sul está localizado em Taguatinga Sul, entre as avenidas Samdu e Avenida Comercial. A Região Administrativa (RA) Taguatinga foi fundada em 5 de junho de 1958, uma das pioneiras RA’s do Distrito Federal, localizada à oeste de Brasília possui uma área aproximada de 442,90 Km². A história do Mercado Sul é íntima à da criação e desenvolvimento de Taguatinga. A cidade foi fundada em terras do município de Luziânia (GO), na Fazenda Taguatinga, que lhe dá o nome, a oeste de Brasília.
O poeta Antônio Garcia Muralha revelou, em seus estudos tipológicos, que Taguatinga tem origem na expressão “barro branco” (Ta’Wa’Tiga, em tupi-guarani), terras da formação geológica que são encontradas na região.
A cidade que abriga esse conjunto de lojas, aliás, comemorou seus 60 anos em 2018. Taguatinga conta com 222.598 habitantes, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2016. Desses, 47,75% encontram-se na faixa etária de 25 a 59 anos. Possui renda per capita de R$ 1.998,14, de acordo com o PDAD 2016, cerca de 60% maior que a média nacional (R$ 1.226).
Após a inauguração da RA, seis meses após a fixação dos primeiros moradores, já funcionavam escolas, hospitais, casa para professoras e estabelecimentos comerciais – entre eles o Mercado Sul e o Mercado Norte, “seu irmão” que hoje funciona integralmente com atividades comerciais.
As edificações do Beco foram inauguradas também em 1958, antes mesmo de Brasília. Assim, o Setor B Sul – QSB 12/13 iniciava sua trajetória cultural, política econômica e social que envolve seus moradores, atendendo o DF não só localmente, mas também regionalmente. Esse espaço na cidade está ligado às atividades culturais mais antigas da região em que se encontra a capital. Nas décadas de 1970 e 1980 viu suas ruas como âmbito da cena underground.
Ao caminhar pelas ruas de Taguatinga Sul é fácil perceber a arquitetura diferenciada dos dois becos estreitos, formados por três conjuntos de lojas. O Mercado Sul se destaca em meio aos grandes prédios e áreas destinadas a igrejas.
Grande parte da arquitetura original é mantida ainda hoje. As lojas que abrigavam as atividades comerciais já serviram para abastecer os trabalhadores da região e da construção da capital construída a ponto de caixa.
Nos anos 70 e 80, ainda com poucos comerciantes ativos, um povoamento boêmio encontrou o Mercado Sul. Na mesma época também já atraía poetas e músicos. Neste momento, o Beco entrou em uma de suas fases mais difíceis do ponto de vista do cuidado urbanístico.
O artista local Abder Paz conta que, nessa época, se inicia um processo de desatenção do poder público com o local: “com o desuso, passa então a ficar abandonado”. Os corredores ficaram muito conhecidos por fugirem de padrões morais conhecidos pela sociedade. Conta-se que o local era área de prostituição, tráfico, bares e que era conhecido por ser um local ‘perigoso’, fora do comum de uma cidade em ascensão como Taguatinga.
Mercado Sul antigamente. Foto: Arquivo MSV
Aos poucos, as lojas também passaram a servir como moradia e a receber pequenos empreendimentos que ofereciam serviços diversos. Um ponto de virada se deu nos anos 1990 com a chegada de Mestre Dico, luthier e violeiro. Um dos primeiros artistas a firmar raiz no local, ele mantém uma oficina no Mercado Sul, com uma tradição familiar musical já de várias gerações.
Diversos grupos artísticos foram se aglomerando com passar do tempo. Nos anos 2000, o Ponto de Cultura Invenção Brasileira realizou mobilizações importantes com artistas da cultura popular e jovens na região. Dessas movimentações chegaram também a oficina Tempo EcoArte, o Cineclube Motirõ, Ciarticum, Tribo das Artes, EcoFeira e tantos outros coletivos que se consolidaram e continuam a semear os fazeres no Beco da Cultura.
“Hoje, com a efervescência cultural e política trazida pelo processo de ocupação e com a chegada de novos grupos e atores para esse caldeirão, o Mercado Sul, se confirma ainda mais como território de encontro, diversidade e criação artística em todas suas formas”, conta Nara.
Esses espaços de encontro estão tanto no dia a dia do lugar, quanto nos eventos promovidos pela ocupação e coletivos locais. “Essa movimentação vem com a certeza de que a cidade precisa de espaços para ser vivida, construída e transformada”, conclui Nara.
Contradições
José Raimundo do Carmo Costa (52), mais conhecido como Zé Serralheiro, não gosta da ‘arte’ do movimento Mercado Sul Vive. Ele diz que se fizer uma pesquisa na região, perceberá que a vizinhança toda compartilha do não gostar. “É muita bagunça, é muito desrespeito!”, afirma o serralheiro revoltado.
“A gente não vê uma cultura igual, por exemplo, quando eu passo no semáforo bem aqui”, aponta para a avenida Samdu Sul de Taguatinga. “Vejo um cabra em cima de uma bicicleta, jogando uns paus de fogo lá, cara, eu estou cansado de dar dinheiro”, diz, “porque aquilo ali sim, eu vejo que o cara é uma arte, né?”, conta Zé Serralheiro enquanto organiza apressadamente algumas vigas de metal no carro.
José do Carmo reclama de tráfico de drogas e cultura no local. Foto: Felicciano/Metrópoles
“Mas na forma em que acontece aqui, cara, tá todo mundo revoltado. O pastor lá da frente, o outro aqui… a vizinha dali, quer dizer, essa arte aí, para nós que moramos e trabalhamos aqui, não soma, pelo contrário, tira muito da gente a tranquilidade que a gente tinha antigamente”, relata o morador.
A comunidade cultural do Mercado Sul, historicamente, acolhe artistas nômades que passam por Taguatinga e ficam sabendo das movimentações culturais no boca-a-boca das ruas. “Vários artistas de rua tem o Mercado sul como ponto de repouso e morada temporária”, contou Nara em uma das entrevistas.
José Raimundo relata que o Beco foi tomado por tráfico de drogas, porque quando o pessoal da cultura entrou nas lojas do Josmar, foram permissivos com ‘esse tipo de coisa’. “A gente sabia que eles jamais iam expulsar a turma da droga, do tráfico aqui, porque 90% da turma consome a droga, a maconha”, denuncia.
“Quantas vezes eu vi um deles mesmo, um cara que eu até conversava e tudo, mas cansei de ver ele pegando droga com os cara aqui para poder mostrar que ele é o cara, porque tava com os cara”, conta José.
“Então os caras se sentiram os caras, por quê? eles tinham o apoio. Apoio de quem consumia a droga deles”, descreve Zé Serralheiro. “Eles achavam assim, no pensamento deles: porra! nós vamos vender aqui mesmo, porque os cara aqui compram de nós. Mais ou menos isso ai”, conclui.
Durante a entrevista sem hora marcada, o morador disse que não gostava de várias pessoas do movimento cultural. Algumas até xingou de “cínico” e “farsante”, também conta que já faltaram com respeito com ele na porta dele.
“Levando em conta hoje a soma de relacionamento entre eu, como morador, comerciante e a turma lá do coisa, cara, não tem…”, de repente, de dentro do portão gradeado de sua casa, a voz de sua companheira entra na conversa.
“Na época em que fazia as festas, ficavam tudo no meio da nossa porta, não deixava nós ter paz. Nós já sofremos aqui o pão que o diabo amassou! Você não sabe é de nada, dessa cultura de bosta”, diz Flávia, referindo-se ao Beco Pub, antigo bar que promovia eventos na rua em que moram.
A moradora conta que organizaram alguns moradores e que botaram ‘moral’, acabaram com o tráfico. “Não foi a cultura não!”, afirma Flávia. Ela diz que mora com as três filhas e nunca se misturaram. “Não é desfazendo ou sendo metida, mas é porque eu não quero minha filhas fumando maconha”, explica.
“Eu só via batendo uns tambô, um monte de droga, de traficante, você sabe o que aconteceu aqui na época, ne? Entrou ROTAM, civil, entrou tudo para poder…. Um tal de Ervilha que aprontou muito, cê não tem noção não”, conta a moradora angustiada.
O casal e suas três filhas já moraram em cerca de três casas no Mercado Sul. A atual faz 15 anos em que moram e é própria, na rua em que as lojas foram ocupadas. A casa foi comprada com dinheiro que o Zé Serralheiro ganhou com trabalho em seus mais de dez anos como operador cinematográfico nos cinemas do Casa Park e Park Shopping em Brasília.
Há sete anos ele largou o cinema, porque a religião de sua família não permitiu. Eles são adventistas, José era batizado e ele não podia “ficar botando filme de violência e de luta”, conta Flávia, após o marido sair apressado para realizar uma entrega de metais.
“No momento eu não tô pagando IPTU, não vou mentir”, engata na conversa sobre como chegaram no Mercado Sul. “Tem uma dívida ativa aí de uns 20 mil, vou tentar vender uma casa minha da Bahia que tenho de herança de família pra eu quitar, mas é que nessa crise eu não to achando o que vale, ne?”, justifica.
Após a ida do marido, Flávia se tranquiliza um pouco mais e diz: “você não leva meu marido mal, não. Já tá velhinho, de tanto trabalhar…”, dá um sorriso tímido, “ele é meio nervoso, estressado”.
Flávia conta que já chamaram ela para as assembléias da ocupação, espaço de decisão do movimento na comunidade. “ Eu não vou mentir, já me chamaram e eu não fui pra nenhuma. Não fui porque… não sei porque eu não ia não…”.
“Quando a cultura fazia festas juninas no quadradão, canjica, pipoca, que o cara anunciavam no microfone para respeitar as pessoas, eu admirava. Eram eventos diferentes”, recorda a moradora. “Tanto teve amigo meu que veio aqui e ficou lá, eu também fiquei uma vez, eu sou da igreja com as minhas filhas, mas não é por isso que eu não vou na cultura, ne?”
“Eu já pensei em vender na Ecofeira no começo, até uma vez eu fiz um caldo muito gostoso, e o pessoal da festa da Ecofeira sentiu o cheiro, sentiu vontade, eu cozinho bem, não é me elogiando não…”, ri Flávia, “mas meu marido é meio assim ne, porque nessa ecofeira tem muito penetra…”.
“Eu vou admitir, essa cultura é do PT , né?”, pergunta Flávia, engatando uma afirmação: eu sou “bolsonariana” fanática!”, diz orgulhosa. “Quando eu amo, eu amo!”.
“Ele é a favor de umas coisas muito boa, da família, ele é meio assim, ele fala umas bosta as vezes, não vou mentir, ele não é perfeito, nem salvador do mundo como o pessoal fica idolatrando”, relata. “Salvador do Mundo é Jesus Cristo, que morreu na cruz por nós”, diz Flávia.
Flávia conta orgulhosa que leu o plano de governo de Bolsonaro e que esta ansiosa sobre o que ele fará de grandes mudanças a partir do dia primeiro de 2019. “Se ele não fizer, eu não voto nele mais”, promete a moradora.
Perguntada sobre o que ela acha da política armamentista, ela afirma: “tá até na Bíblia, ne? Não matarás. o maior pecado. Não… depois ele veio, disse que era no passado porque ele não tinha juízo”, explica. “Eu pesquisei, mas será menino? Que ele é a favor dessas matança? Não resolve tudo na bala não… Resolve nas lei. É, eu não vou mentir, ele fala muito de arma, só votei nele porque não tinha outra opção.
Flávia conclui: “minha família da Bahia endoidou, “É Haddad, tu considera tua mãe!!!”, ri.