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Sonia Maria anunciando seus produtos na Ecofeira do Mercado Sul. Foto: Webert da Cruz

Capítulo 5

Sustância para resistir

A lua será cheia, mais uma Ecofeira do Mercado Sul. Outra vez a feijoada, tradicional ou vegana, da Sônia Comedoria estará à venda. O empreendimento familiar coletivo é desenvolvido na cozinha de uma das lojas ocupadas pelo MSV.

Sonia Maria (50) é negra, alagoana, mãe, cozinheira e do corre. Há oito anos também se veste de palhaça Afonsinha, personagem animadora de festas para descolar um complemento na renda. Após três anos, desde que ocupou, ela movimenta a iniciativa de alimentação no local. A cozinheira de mão cheia recebe ajuda da filha do meio Giulliana Leticia (17), que também mora na comunidade, e Luiza de 12 anos, uma das crianças que vivem no Beco.

Nas Ecofeiras, a nora de seu filho mais velho também contribui nos trabalhos da cozinha, junto a amigos de suas filhas e até vizinhas. Além da feijoada tradicional e vegana, o empreendimento também sempre oferece outras opções da gastronomia brasileira. Inclui-se também suco, bolo, tortas, caldos, cerveja e cachaça.

A Sonia Comedoria sempre compõe a programação da feira de economia solidária que acontece mensalmente, quando a lua está totalmente iluminada, aos sábados no Mercado Sul. A banquinha da Sônia é ponto de encontro. Quem vai ao Beco em busca de comer algo em dia de feira, certamente perceberá a mulher de andar apressado, sempre trabalhando, de fala ligeira e sorriso no rosto.

Fugida dos aluguéis caros da cidade e por construir vínculos no local, Sônia entrou na ocupação por precisar morar. Ela já teve loja alugada no local e tocava um barzinho, porém teve de fechar por não sustentar os altos aluguéis. Mas a partir do seu trabalho com a culinária, ela percebeu MSV a possibilidade de lutar por um local e ao mesmo tempo realizar o seu trabalho. Produzir comida e ser alimentada com as movimentações culturais do movimento.

“Como a gente vai produzir, criar, cantar, dançar com fome?”, questiona Sônia. Durante os mais de três anos, conta-se nos dedos as atividades da ocupação que não tiveram o tempero dela nos ‘rangos’. Ela atua em um lugar estratégico da manutenção de qualquer movimento: a alimentação. Seja no campo ou na cidade, gente na missão de cozinhar é substancial.

Sônia sempre oferece o prato que exala brasilidade: a feijoada. A iguaria que representa diversidade, vista a variedade de ingredientes que são utilizados em sua produção. Porém, quando vamos refletir sobre nossas brasilidades e encaramos de frente suas adversidades, percebemos que, infelizmente, os problemas não são tão saborosos.

Sônia na cozinha coletiva da ocupação MSV. Foto: Arquivo MSV

As diferenças brasileiras também perpassam os números de moradia. Quais níveis de (des)igualdade, em termos de garantia direitos básicos, estão formatados os centros urbanos, periferias e campo no Brasil? Uma discussão antiga e complexa no Brasil sobre a questão fundiária, sobre terra ou de teto. Engodo presente na vida da família de Sonia e suas filhas, e na de cerca de 33 milhões de brasileiros que não têm onde morar, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos.

Cresceu 1,4% o número de invasões no país entre 2016 e 2017 revela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). São 145 mil domicílios nesse contexto, diante 143 mil em 2015, em condições precárias.

Em 2017, Sonia enfrentou um problema sério de água morando na ocupação. Desafio que impactou na cozinha do seu empreendimento. Por questões relacionadas à contas antigas e não pagas das lojas abandonadas, cortaram a água do local. O acontecimento ocorreu em uma operação da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) em abril do ano passado.

O número de 112 usuários da Caesb está cadastrado em todo o conjunto, entretanto, 49 estão ativos. A operação ocorreu pela histórica crise de abastecimento de 2017 no DF. O consumo de água caiu 11% em comparação com a época de liberdade para as torneiras, durante 513 dias em que o racionamento esteve em vigor.

Diante da grave crise hídrica pela qual passou a capital, o Mercado Sul estava entre os listados de uma operação para retirada de ligações irregulares. A ação buscou verificar a situação desses clientes e intensificar a fiscalização contra a ‘clandestinidade hídrica’. Sobre tal situação, a estimativa é que tenham sido desviados 225m³ de água por mês no Beco todo, segundo matéria investigativa do jornal Correio Braziliense.

O gerente de fiscalização e vistoria, Geraldo Donizeth, deu uma entrevista para o jornal afirmando que muitos dos casos ilegais poderiam estar em imóveis que estivessem vazios, e que era normal que o uso da água ficasse inativo. “Pode ser que esteja suspenso ou que o proprietário esteja inadimplente. E pode ser que uma loja tenha ampliado para mais imóveis e tenha sido cortada a ligação das outras. São vários fatores”, explicou.

“São ligações que dizem respeito a outros proprietários, e estão ligadas há muitos anos”, disse Abder Paz na época. Ele afirma que algumas pessoas entraram em contato com a companhia para tentar regularizar essas situações há anos, mas que quando chegaram no local, a Caesb disse não ser possível, pois o contrato do imóvel não era no nome dos ocupantes.

A Caesb, na época, estimou que existisse cerca de 32 mil ligações com potenciais consumos não autorizados em todo o DF, desviando 680 mil m³ de água por mês. Esse número pode levar a um prejuízo mensal de R$ 2,7 milhões.

“A gente monta essas operações para diminuir a perda, que contribui para a crise hídrica, e elevar esse índice para a casa dos 20%. Toda a água que é consumida sem medição e sem o devido pagamento, a tendência é que seja desperdiçada”, explicou o gerente de fiscalização. De acordo com a Caesb estima-se que cerca de 32% daquilo que é produzido, é perdido por vazamento, por furto de água ou até mesmo por operações do sistema.  

A legislação não permite você dar água a terceiros. A intenção da lei é que é de proibir haja um comércio fora das empresas públicas competentes para isso. Porém, para o assessor jurídico Pedro Mendonça, que acompanha o processo do MSV pela Candanga Advocacia. Ele diz que existe hipocrisia e contra senso na interpretação de lei. É tudo levado a risca em uma comunidade que precisa da água para seu dia-a-dia.

“Ao mesmo tempo, o GDF sedia um evento que é feito para os lobistas das águas, para pessoas que querem lucrar com a água em Brasília”, conta Pedro. Ele se refere ao 8º Fórum Mundial da Água (8FMA), um evento que aconteceu de 18 a 23 de março, realizado por grandes corporações que discutem a águas brasileiras em grandes negócios. “É  uma interpretação limitada que a caesb esta tendo, colocando novamente o direito fundamental a água em segundo plano.

No mesmo período do 8FMA, ocupantes MSV denunciaram a questão da água no Beco no Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), evento contraponto do evento das corporações. Inclusive assinaram a declaração final do fórum.

Em 2015 a ocupação abriu um processo de regularização da questão da água, foi negado. Em 2017, com diversos moradores, foi aberto outro, também sem sucesso.

Imbróglio jurídico

Ainda que ocorra de a ocupação conseguir uma desapropriação das lojas pelo Estado, existe uma disputa semântica a ser enfrentada. Pessoas como a Sonia e sua família talvez não possam continuar morando no espaço e nem poderão continuar suas atividades de subsistência. A questão aberta é se as ações desenvolvidas por elas são reconhecidas práticas culturais para continuarem nos espaços. Além dela, existe mais um caso na comunidade.


“Se ganhar, a gente vai precisar achar uma alternativa de moradia para essas pessoas!”, afirma Abder. “Não estamos discutindo se elas vão entrar em um programa habitacional e vão ganhar um Minha Casa Minha Vida”, pontua.

A assessoria jurídica do MSV reconhece que, se Governo de Brasília desapropriar as lojas ocupadas para fins culturais e artísticos, Josmar ganhará uma indenização. Além disso, as lojas poderão passar por um processo burocrático de cessão de uso dos espaços para alguma entidade gerir. Esta característica ainda é uma questão para o MSV, pois não possuem CNPJ, entretanto é o caminho indicado até o momento.

“O fundamento da desapropriação dado pelo GDF, de interesse social, de utilidade pública, que tem que ser fundamentado para desapropriar o local fundamentado na cultura. Em preservação do patrimônio artístico cultural, material e imaterial”, explica a advogada Karoline Ferreira Martins, da Candanga.

“Ai entra a disputa semântica do significado de cultura que a gente e o movimento precisará fazer”, afirma Karoline. Se for uma visão estreita do que é cultura, o decreto de desapropriação não vai permitir que a Sônia fique.

O arte-educador expõe que o movimento esta discutindo que os trabalhadores e trabalhadoras fazem parte da história do Mercado Sul e que elas deve ficar. “A noção de cultura tem que ser nesse sentido: compreender que moradia também é cultura”, sustenta Abder.

“Estamos falando de Mestres da Cultura Popular, aí você vai falar: não Mestre, agora para você continuar o seu ‘Cavalo Marinho’ você vai precisar morar no Rio Grande do Sul”, analisa com difusores da manifestação cultural nordestina. “Porque lá é onde o senhor ganhará o dinheiro, o senhor terá um lugar para morar’, não é isso!” expõe o ocupante.

Argumenta Abder: “tem que construir lá onde o Mestre esta, com condição de que ele possa viver, para que ele possa produzir arte, sua cultura”. O arte-educador questiona o porquê das pessoas não poderem  pessoas não podem morar.

“A gente consegue embasar muito mais se a gente fala: não, vamos reconhecer a Sônia como uma mestre. E o que ela faz é cultura, porque é comida. Porque comida é cultura, prática tradicional”, discute Abder. Aconteceram diversos debates no MSV sobre morar ou não, se ‘pode’ ou ‘não pode’.

O arte-educador diz que nas cidades, com o atual padrão neoliberal de produção artística, de arte apenas como um trabalho, consegue-se render uma leitura de que os espaços com fins artísticos não podem ser moradia. Mas se pensar com a interpretação de que na cultura popular moradia atrelada a fins culturais é muito comum, consegue compreender o porquê da Sônia ter que ficar. Porque ela é parte.

“Pela lei, nem aqui a gente poderia estar, se a gente for partir do princípio da legalidade, nem aqui poderíamos, mas aqui estamos”, conta o ocupante. “Estamos trabalhando para que encontrar os mecanismos que existem ou criá-los para que ela possa morar. Porque ela é parte da história do Mercado Sul”, argumenta.

O grande diferencial do MSV, é que suas ações se misturam com as práticas de convivência, “ para gente ter onde morar”, diz Abder. “O que seria do Virgílio se ele não trabalha-se e morasse onde ele trabalha? Ele não trabalharia e produziria a quantidade de coisas que ele produz, se ele não tivesse tão próximo do trabalho dele”, indaga. O arte-educador questiona: “como é que vou dizer que a Sônia, com a prática de comida dela, não é cultura?”.

O caso da Sónia pode ser analisado à sombra também da negação de outras políticas sociais. Essa história dialoga com questões profundas do não acesso ou inviabilidade, ou até mesmo inexistência de políticas públicas básicas que garantam moradia para todos, mas também do reconhecimento da moradia para os fazeres culturais.

A experiência de Sônia, mulher negra, mãe e trabalhadora, que precisa ocupar espaços na cidade para conseguir trabalhar e sustentar sua família, conta sobre a sobrevivência e resistência contra uma expulsão histórica dos que não cabem no centro. Os sem-lugar, como os banidos na história do Plano Piloto, foram e vão para as Regiões Administrativas até hoje. São até expulsos para o Goiás, da divisa para lá.